O encontro rolou!

Gratidão: papo furado pseudo-espiritual ou base para o juízo prático?

por Marcus Telles.

A roda de conversa que vamos realizar amanhã (28/10/2019) aqui na Dissidência é sobre “liberdade diante das histórias”.

Uma das coisas que vamos fazer é conversar e fazer algumas práticas sobre gratidão. É interessante como esse termo gera uma não-injustificada desconfiança, por ter se tornado parte de um vocabulário pseudo-espiritual não necessariamente comprometido com compreender e agir no mundo realisticamente. Assim, não fica tão claro o quanto é potente manter sempre viva a atitude mental a que ele se refere, para muito além de qualquer superficialidade.

A bem da verdade, é o contrário: se queremos ser realistas, e se localizar as potencialidades de ação realmente existentes no mundo, não temos a opção de acreditar que somos self-made men, que existimos de maneira separada de toda a rede interconectada de seres. Como diz a Mindrolling Jetsun Khandro Rinpoche,

“Tudo que você se tornou e atingiu como um indivíduo capaz de compreender surgiu graças à bondade coletiva de incontáveis indivíduos que te trouxeram à existência. Você não teria tido uma educação sem que outros a dessem para você. Seu aprendizado, compreensão, habilidades, e mesmo o seu nascimento não teriam jamais ocorrido sem a contribuição de outros. Mas a mente humana pensa sobre isto?

Se você não toma um tempo para pensar em você como um acúmulo da bondade amorosa de outros, você pode começar a associar o desenvolvimento da sua própria bondade com fazer “favores” aos outros.

Para reverter esta atitude, é essencial não ter pressa de praticar bondade e compaixão. Primeiro, tome um tempo para entender gratidão. Reflita sobre a sua interconexão com todos os seres sencientes até o ponto em que você possa dizer: ‘Ao menos 100 indivíduos contribuíram para produzir este copo de água diante de mim, para que eu possa bebê-lo quando eu precisar.’ Realmente observar isto é o portão para a bondade amorosa. […] Tome um tempo para verdadeiramente repassar toda a bondade que você recebeu, uma por uma.”

“[…] [Desenvolver] um senso de urgência para retribuir a bondade irá diminuir qualquer toque de arrogância que possa haver em sua própria expressão de bondade.”

Não é à toa que, no livro Esperança Ativa, que a editora Bambual irá publicar em breve no Brasil, Joanna Macy e Chris Johnstone repetem o gesto que Macy fez em tantas de suas (brilhantes) produções: afirmar que a gratidão é o ponto de partida para nos curarmos da nossa ilusão de existirmos de maneira desconectada do restante da vida na Terra. Ao reconhecermos que nossa existência é inseparável do ar, dos alimentos, do calor, do chão, dos nossos ancestrais, etc., surge naturalmente o impulso de devolver o cuidado ao restante do planeta.

Gratidão tem, portanto uma dimensão cognitiva. O que é também uma forma de dizer que a cognição é inseparável da imaginação, das emoções, dos desejos – todos os elementos que se manifestam quando contamos histórias sobre nós: se achamos que nossa existência é separada de toda a vida, nossa capacidade de compreender o mundo fica limita.

Joanna Macy

Assim também com o amor e a compaixão, talvez todas as “qualidades incomensuráveis”. Se entendemos o amor como a aspiração de que os seres sejam felizes, e a compaixão como o aspiração de que ultrapassem o sofrimento, então a presença deles modifica toda a nossa capacidade de compreensão. Isto é: não é “errado” compreendermos uma montanha, um frango, ou mesmo uma revolta popular como meros pontos em uma curva, como dados, estatísticas, recursos. Mas olhar para o mundo a partir das nossas aspirações mais profundas nos permite desvelar aspectos da realidade para os quais, de outro modo, ficaríamos cegos. Adicionalmente, reconhecendo a presença em todos nós da aspiração de sermos felizes, e reconhecendo a interconexão, então é pragmaticamente difícil de questionar que nutrir as qualidades dos demais seres e ajudá-los a superar seus obstáculos beneficia ao sistema inteiro, incluindo a nós mesmos, que somos parte do sistema.

A própria contradição entre “cuidar do próprio interesse” e “cuidar do outro” desaparece. Os demais seres e nós compomos um mesmo sistema.

Num certo sentido, se não partimos da gratidão, do amor, da compaixão, podemos ser tomados por uma certa burrice prática – uma incapacidade de phronesis, de formular juízos práticos situacionais -, ainda que todos os dados que utilizemos estejam corretos. A decisão de onde focar a atenção é parte inseparável do que aspiramos, por um lado, e do que será visto, por outro. Uma cultura que não partisse daí seria estranhíssima: daria um puta valor a abstrações como PIB e fronteiras nacionais, mas não reconheceria a dignidade dos seres. Imagina só…

Gratidão, amor, compaixão etc. não garantem nada, claro, mas são bons pontos de partida. Isto não vale só para pensar o mundo social, mas também as nossas vidas. A própria sensação básica com a qual interrogamos o mundo se modifica totalmente: se não lembro de tudo que efetivamente recebi da rede de seres, se me sinto sempre no direito de demandar mais e na vontade de oferecer menos, posso me ver como um ser em falta, e fazer surgir um mundo correspondente – um mundo onde minha falta vai ou não ser atendida. (Spoiler alert: não vai.) Ram Dass já disse algo como: “Se eu sinto muita fome, não vou conseguir evitar olhar para todo o mundo em termos do quanto ele pode ou não me saciar.” Partir da gratidão é se perceber nutrido – e, como Macy e Johnstone bem frisam, não há capitalismo consumista que não dependa da nossa sensação de carência insaciável para sobreviver.

Na perspectiva de alguém como Joanna Macy, mesmo a separação entre ativismo e práticas espirituais perde o sentido. Não se trata apenas de utilizarmos técnicas para relaxar um pouco diante de um mundo que nos devora, mas de reconhecermos que, como o Lama Padma Samten e outros mestres apontam com tanta frequência, construímos o mundo a partir dos nossos referenciais internos. Assim, praticamos não para suportar mais um dia de exploração capitalista, como é tão comum acontecer, mas para ver mais amplamente os problemas a combater e as possibilidades a nutrir. Neste sentido dos termos, ação coletiva no mundo tem sim tudo a ver com compaixão e com amor.

 

  • Mais informações a roda de conversa com o tema “liberdade diante das histórias” (28/10/2019).
  • O livro Esperança Ativa, de Macy e Johnstone, está recebendo financiamento coletivo. Mesmo que queira apenas adquirir um exemplar, você já contribui para a publicação. Mas há várias alternativas interessantes. Ver o link.

O Coemergência se propõe a explorar temas importantes da nossa sociedade e da vida cotidiana, sempre à luz da relação entre os nossos mundos interno e externo. Partimos do princípio de que a maneira como percebemos e nos posicionamos no mundo está diretamente relacionada aos nossos referenciais, visões de mundo, emoções, hábitos e experiências prévias.

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1 comentário
  • Nossa, adorei!!!
    Puro, gostoso de ler. Complicado um pouco, mas muito profundo.
    Deveria ser matéria repetitiva no primário, ginásio e superior.
    Somos todos carentes deste conhecimento simples.
    “Tudo que você se tornou e atingiu como um indivíduo capaz de compreender surgiu graças à bondade coletiva de incontáveis indivíduos que te trouxeram à existência.”
    “Se você não toma um tempo para pensar em você como um acúmulo da bondade amorosa de outros, você pode começar a associar o desenvolvimento da sua própria bondade com fazer “favores” aos outros.”

    Que lindas palavras para serem pensadas todos os dias.