Suas opiniões resistem à redescrição?

por Marcus Telles

Como todo mundo já deve(ria) ter notado, é padrão que propostas punitivistas descrevam aquele que deve ser punido ou eliminado como “verme”, “nóia”, “filho da puta”, “vândalo”, “black bloc”, “esquerdalha”, “fascista” etc. Você manteria seu discurso se redescrevesse o xingamento por um termo mais amplo, como “pessoas”? Em vez de “tem que matar esses vermes”, “esses vermes têm mais é que ficar numa cela superlotada mesmo”, você diria “tem que matar essas pessoas”, de preferência nomeando uma por uma?

Ora, é argumentável que, a partir de certo momento, seria necessário matar Hitler: “se matarmos essa pessoa, a guerra vai acabar mais rápido”, algo assim. Por que, em tantos outros casos, a redescrição não irá te soar tão normal? De vez em quando, fale “pessoas” nas frases que usualmente você formula com “nóias”, “vermes” e afins, e veja quantas delas você desejará manter.

(Bem melhor que matar Hitler, obviamente, é prevenir as causas e condiçõesdo nazismo: os padrões de pensamento e ação que sustentaram seu regime é que precisam ser desarmados, pois renascem em outros corpos e assumem muitas configurações.)

Na mesma linha: use descrições que destaquem outros aspectos da pessoa e veja se seu desejo em relação a ela se mantém: “é necessário matar o filho de Klara e Alois”, “teria sido benéfico matar este [Hitler] ser-que-quer-ser-feliz” (é o que todos querem) ainda funcionam após a troca. Mas “o filho da dona Sônia, uma pessoa que se viciou em crack, tem mais é que se fuder mesmo” ainda te soa razoável? Se não, por que sua opinião só faz sentido se houver essa ocultação? Se sim, você ainda pode testar de novo: “sim, é o que eu — viciado em cigarro, cerveja e estímulos, e que absolutamente não tenho que me fuder — acho!”

O mínimo que o exercício irá revelar é o quão pouco você sabe sobre a pessoa cuja existência você quer eliminar; porque o efeito de muitas descrições é exatamente a ocultação da própria necessidade de olhar para o seu referente.


Este vídeo sobre a superlotação dos presídios brasileiros circulou bastante pelas redes sociais nos últimos dias: que descrições temos usado para as pessoas ali atrás?

Que com o tempo isso já fique implícito em nossas mentes: quando digo “Antônio”, sei que é: “Antônio, que tem pai e mãe que o amam, que quer ser feliz, que tem sonhos, etc”. Isso não é ter peninha, é simplesmente ser realista. Se meu desejo de punir Antônio não resiste à realidade de suas circunstâncias, o que isto diz sobre o meu desejo? As falas punitivistas têm um aspecto em comum: elas negam ou tiram o enfoque do que temos de humano em comum e enfatiza (de uma forma, aliás, que também não resiste a uma observação mais detalhada) uma suposta inferioridade, talvez também uma perversidade real ou imaginada, de qualquer forma transformada falsamente em uma metonímia do ser como um todo.

(Um problema de só reconhecermos “o humano” em comum, é claro, é não reconhecermos os demais seres vivos como “pessoas”, em um sentido muito mais ampliado do termo, e por isso submetê-los a uma vida de sofrimento inimaginável — ou: que se tornou inimaginável pelo nosso desinteresse em imaginá-lo — para depois comê-los desnecessariamente e gerar lucros para um punhadinho de acionistas. Que estes descrevam seus próprios negócios por termos como “indústria do frango” já deixa muito clara a força de ocultação das descrições naturalizadas. Experimente não mais dizer “amo peito de frango” e sim “me alegro ao comer partes de um ser vivo”, ou, detalhando mais, “me alegro por um tempinho bem curto ao comer partes de um ser vivo que sofreu por um tempo bem longo”. E se essa fala te ofende mesmo sem seu tom ser ofensivo, eu te sugiro se perguntar pelo motivo.)

Também dá pra fazer o exercício em épocas de eleições, redescrevendo as políticas efetivamente adotadas pelo seu político preferido usando seus slogans de campanha e vendo o quão dissonantes te soam: “Coração Valente foi quem menos demarcou terras indígenas desde a Constituição de 1988; seu governo (corajosamente?) preferiu se aliar à bancada ruralista”, “A pessoa-que-vai-mudar-de-verdade-o-Brasil recebeu propinas e mataria o primo antes dele delatar”, “o Gestor adota políticas de drogas e de trânsito ineficientes e violentas”, “o Mito nunca formulou publicamente um único raciocínio mais complexo que um bordão”, etc

Ou, redescrevendo aspectos específicos: “precisamos eleger a candidata financiada pela JBS, caso contrário o candidato financiado pela JBS irá ganhar”, etc.

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Dá pra fazer com qualquer área da vida. Cada descrição apresenta seu objeto sob um aspecto, que jamais o esgota; e apresenta o objeto no mundo: quando creio que o outro tem menos valor, então vivo em um mundo onde os seres são hierarquizados e existo separadamente deles; quando só vejo as ameaças dos seres mas não suas potencialidades, então vivo em um mundo incontornavelmente inseguro; etc. Não trancar seres e situações em uma única forma de olhar é uma forma de sabedoria, que depois pode nos ajudar a ver que mesmo estas descrições são provisórias, pois resultam de causas e condições que não se sustentam por muito tempo. Melhor mesmo é nem nos perdermos muito com palavras e mexer diretamente na base emocional e volitiva que as prefiguram. Repara bem: quando dizemos que alguém é um verme, o que estamos comunicando antes de tudo é como se posicionar em relação a ele. Essa atribuição de valor é ativa, não passiva, e atua hierarquizando, nos termos de Judith Butler, quais vidas importam e quais não importam, quais são dignas de luto e quais não são.

Se sua opinião não resiste à redescrição, aí sim: melhor matar essa filha da puta logo.

O Coemergência se propõe a explorar temas importantes da nossa sociedade e da vida cotidiana, sempre à luz da relação entre os nossos mundos interno e externo. Partimos do princípio de que a maneira como percebemos e nos posicionamos no mundo está diretamente relacionada aos nossos referenciais, visões de mundo, emoções, hábitos e experiências prévias.

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