#22 Reencantamento do Mundo (com Lama Padma Samten)

Não tem sido incomum nos depararmos (tanto individualmente quanto coletivamente) com uma sensação disseminada de apatia e resignação diante das crises pelas quais passamos atualmente – econômica, política, ambiental. Como manter (e ampliar) nossa estabilidade, compaixão e sabedoria em meio a esse cenário? Como olharmos para essas circunstâncias como quem olha para algo maleável, vivo, plástico, sem tanto fechamento e solidez? Como deveríamos agir nesse contexto todo?

Fomos buscar direto de uma de nossas principais fontes as respostas para essas perguntas: Lama Padma Samten. Nossa alegria em poder ter essa conversa com ele e compartilhar com vocês não poderia ser maior.

Fundador do Centro de Estudos Budistas Bodisatvas, o Lama Padma Samten se dedica a disseminar os ensinamentos budistas há mais de 30 anos. Com uma linguagem acessível, direta e afetuosa, ele nos conduz por meio dos ensinamentos mais elevados.

E não se engane pela leveza na fala: o Lama é uma explosão de vida e energia. Com os templos, centros urbanos, espaços para retiros, escolas e comunidades espalhados pelo país, ele nos mostra como uma ampliação na visão leva a uma ação no mundo destemida e criativa. Seu jeito de andar levando benefícios por onde passa resume bem o que colocamos na descrição do nosso programa: “Não há um mundo pronto lá fora”.

Que a gente se deixe contagiar e inspirar por esse brilho que o Lama traz para a realidade!

Para quem quiser conhecer mais do trabalho do Lama Padma Samten, ele está no Instagram, Facebook e YouTube. E o site do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB) é esse aqui, com a programação dos diferentes centros e também com ensinamentos em texto, áudio ou vídeo.

Vamos reencantar nosso mundo? Dê o play e vem compartilhar dessa felicidade com a gente!

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Quer apoiar o Coemergência? Estamos no Apoia.se 😉

 

Transcrição do episódio

 

Daniel: Estamos gravando, estamos no ar. Edição extra-extraordinária do Coemergência. Saímos de nossa humilde residência. Geralmente a gente costuma receber, mas dessa vez estamos sendo recebidos aqui. Viemos em busca de nosso querido Lama Padma Samten. É uma enorme honra, muito obrigado por aceitar o nosso convite, lama.

Lama Padma Samten: Alegria! Vocês estão famosos agora, me sinto muito honrado também. É a lavanderia mais famosa que tem.

Daniel: Pois é, e hoje a gente deixa a nossa lavanderia em edição extraordinária, a gente espera contar com você lá uma vez. Quem sabe um dia! Lama, primeiro só apresentando aqui todos que estão participando dessa mesa. Muitos alunos, muitas pessoas vieram aqui se somar. Então eu vou apresentar aqui e a gente vai falando. Hoje com a gente: Kalyne Vieira, Manuela Laranjeira, Alisson Granja, Guilherme Ikeda, Marcus Telles, Andressa Sampaio, Murillo Antonini, e eu, Daniel Cunha. E Lama Padma Samten, de novo, é uma honra, toda vez que eu olho eu tô ficando um pouco nervoso (risos). Lama, a gente tem esse projeto desse podcast que tem esse nome de Coemergência, talvez o senhor saiba por quê, talvez tenha alguma ideia.

Marcus: Tomara que não tenha problema com direitos autorais. (risos)

Lama: O Gyatrul Rinpoche é que usou essa palavra,  eu encontrei com ele, então tem que falar lá com o Alan Wallace…

Daniel: Lama, a gente queria começar então um pouco por aí. A gente já falou de Coemergência muitas vezes no programa, inclusive a gente teve um episódio especial com o Gustavo Gitti em que a gente tentou que surgissem alguns exemplos de coemergência para ajudar as pessoas de casa a entenderem. Porque o nosso público tem pessoas budistas, muitas pessoas budistas, porque naturalmente a gente acaba entrando por esse mundo, mas tem muita gente que não. Então a gente tenta traduzir, no limite da nossa capacidade de falar sobre esse tipo de assunto, mas aí a gente queria falar um pouco sobre…

A gente acredita que essa visão de coemergência é muito revolucionária, seria muito importante que ela fosse introduzida na cultura de alguma maneira, que isso ajuda muito as pessoas. E aí o senhor fala muito disso, e a gente gostaria de puxar para alguns temas que a gente ouviu o senhor falando, que é falar da coemergência nessa perspectiva bonita que o senhor traz que é do reencantamento do mundo, de como a gente pode olhar para o mundo de uma maneira diferente, inclusive usando esse exemplo da realidade ser como uma instalação artística. A gente queria começar por aí, se você pudesse comentar um pouco sobre isso.

Lama: Eu vou pegar um exemplo que me ocorreu, assim, e depois eu vou seguindo. De modo caótico é melhor, né?

Por exemplo, a visão psicanalítica está inserida na nossa cultura. Ela é considerada até uma visão científica, né? Eu acho um pouco estranho que seja considerada ciência propriamente, né? Mas a visão psicanalítica está inserida na nossa vida. E a visão psicanalítica, a gente poderia dizer que ela usa de algum modo a coemergência. Porque o nosso mundo interno que vem de experiências anteriores, ele termina coemergindo na visão de mundo como a gente tem. Então as nossa reações, a forma pela qual nós vemos as aparências e reagimos a elas, o Freud vai explicar, tem uma relação com experiências anteriores. Então é como se ela coemergisse com os conteúdos inconscientes, na visão psicanalítica nós vamos falar do inconsciente. No budismo a gente não fala do inconsciente, a gente vai falar das estruturas cármicas e das marcas mentais, e nós vamos falar de alayavijnana, e nós vamos falar da bolha, mas as nossas experiências externas coemergem com o nosso mundo interno.

Numa outra forma de explicar, a gente poderia dizer que o mundo é um espelho que reflete as nossas estruturas internas. Os cientistas, numa época, diziam que a mente era um espelho que deveria estar muito bem polido para refletir as aparências, sem distorcer as aparências. Mas na visão budista as aparências são um espelho que reflete esse mundo. Por quê? Porque o mundo interno coemerge com a aparência como ela surge. Então quando nós trabalhamos com a noção que o mundo pré-existe à consciência, que ele está além da consciência, que ele é uma coisa sólida do lado de fora e a gente descreve a montanha, descreve o sol, a lua, descreve tudo como se fossem existências em si mesmas, nós estamos dentro de uma perspectiva que, no budismo, a gente vai considerar que é avydia, que é samsara. Aí, quando nós consideramos que o mundo reflete as estruturas internas, nós conseguimos explicar por que que ciência, mudando a visão interna das leis e a forma como entende as coisas, ela produz uma capacidade de ver as mesmas experiências, nos mesmos experimentos, ver outras realidades. Em outras palavras, quando o nosso mundo interno muda, a realidade muda também. Então hoje isso é conhecido no mundo psicológico, também no mundo científico, as experiências densas mudam. A nossa visão de mundo, a cosmologia, por exemplo, produz outras visões de universo a partir das mudanças internas. Então a coemergência é essa compreensão de que aquilo que a gente vê como se fosse externo na verdade está coemergindo com as estruturas internas, emocionais e de energia, e cognitivas também com que nós estamos operando.

Daniel: E lama, o senhor acha que seria possível isso ser introduzido na cultura sem necessariamente um viés religioso, ou de alguma tradição de sabedoria ligada à espiritualidade. Você acha que é possível introduzir na cultura essa noção de coemergência?

Lama: Eu acho que sim. Eu acredito que, por exemplo, as tradições religiosas trazem as verdades que são mais complexas de serem entendidas, elas envolvem essas verdades num processo que nós podemos repetir. Tem várias práticas que reacessam essas verdades. Então, como essas visões não são bem entendidas, elas precisam de um envoltório que a gente justifique de ser mantido mesmo que a gente não esteja entendendo bem. Então o envoltório religioso, místico é útil pra isso. Mas, especialmente dentro do budismo, nós não temos nenhuma verdade que não possa ser traduzida dentro de uma perspectiva experimental, que não pode ser atestada claramente pelas coisas. E o fato de que nós atestamos claramente as coisas através de um processo experimental, um processo vivencial, nos liberta da necessidade de nós trabalharmos com crenças. Então as crenças, ou as visões espirituais, os ensinamentos existem e se mantém para nos ajudar a desenvolver a visão correspondente. Mas se aquela visão correspondente não surge, [se] ela não é verdadeira, ela não se vê como algo verdadeiro, aquilo é abandonado.

O Dalai Lama vai dizer, por exemplo, se a noção de reencarnação é um problema, a gente retira. Se aquilo não é visível, a gente retira isso do ensinamento budista. Porque o ensinamento budista está ligado diretamente à realidade mesmo.

Guilherme: E aí, lama, conectando exatamente com esse ponto de tentar entrar em contato mais com a realidade: às vezes, quando a gente começa a estudar coemergência e ver que então o nosso mundo interno está influenciando o modo como a gente vê  o mundo e as diferentes visões, pode ser que a gente caia num certo relativismo. No sentido de achar que então, “ah, é só mais uma outra visão que está sendo criada e sustentada e válida na mesma medida”, digamos assim, entre aspas. Quais deveriam ser os diferentes critérios que a gente deveria utilizar, então, para avaliar se uma visão está mais em contato com a realidade ou é mais ampla [que outra]. Como evitar cair nesse extremo de relativismo?

Lama: O que acontece é assim. Quando nós olhamos aquilo que a gente chama de realidade, nós sempre vamos usar um ponto ou outro [de onde] a gente olha. Mesmo o ponto a vacuidade, o ponto da vacuidade, ainda que ele seja perfeito, né, o ponto da coemergência, a gente olhar tudo isso, esse é um ponto que pode se revelar inútil quando a gente tem que ir na padaria ou tem que fazer alguma coisa assim. E aí, agora eu vou ficar olhando, agora chego na padaria e tô coemergindo, e aquilo pode parecer inútil. Então eles são pontos de vista.

Agora, o ponto de vista da coemergência é tal que ele nos liberta de outros pontos de vista, de ter que aceitar os outros pontos de vista como verdadeiros. Então ele nos ajuda a libertar isso. Mas ele não vai ao ponto final. O ponto final seria a gente também fazer a pergunta: mas quem é que tá vendo a coemergência? Como é que ela brota? Da onde eu vejo a coemergência? Porque o ponto final não é uma visão específica que eu vou desenvolver, o ponto final é o lugar de onde eu olho que eu consigo entender os aspectos limitados de cada uma das visões. Então, por exemplo, nós podemos nos colocar num lugar que critica a própria visão da coemergência, porque, enfim, ou a visão da vacuidade, ela se torna uma visão que me deixa um pouco em dificuldade para lidar com coisas práticas. Além do mais, ela pode desenvolver uma visão adversarial com relação às visões causais comuns, e as visões causais comuns são visões muito hábeis pra gente entrar em mundos específicos. Por exemplo, ninguém vai conseguir jogar xadrez negando a existência das peças, ou a realidade das peças. A gente pode sorrir para a realidade das peças e jogar um jogo maravilhado, onde nada daquilo tem um sentido absoluto mas dentro dos sentidos construídos aquilo tudo é possível.

Assim, essa visão anterior, ela é a visão onde nós vamos tomar refúgio, é a visão livre da mente. É esse aspecto, então o nosso refúgio tá nessa natureza livre, onde eu posso depois me cercar de referenciais, construir aparências e jogar dentro das aparências, mas eu não preciso me perder pensando que essas aparências são absolutas, finais, últimas, e que dali tem códigos finais. Não preciso. Então nesse sentido o budismo é libertador, porque ele não me coloca num lugar onde eu sou obrigado a rejeitar algum tipo de realidade. Não, ele elucida aquela realidade, ele amplia aquelas realidades, eu consigo me movimentar ali dentro com outras possibilidades.

Aí quando a gente olha, por exemplo, o jogo de xadrez, eu acho interessante, porque se a gente olhar de uma perspectiva rígida, o jogo terminou, é isso. Mas a gente pode, de repente, como às vezes eu brinco, a gente pode substituir um bispo por um xamã. A gente pode fazer um upgrade no jogo, né? Alterar, fazer um sistema melhor. Eu acho que realmente isso é uma coisa interessante. Aí o xamã pode alterar o que o rei pode fazer, o que o cavalo pode fazer, o que o peão pode fazer, o que o outro bispo pode fazer, o que a rainha pode fazer. Na proximidade – eu não sei bem como inventar isso, porque essa parte… – mas isso é arte, entende? Aí vem a arte. Eu acho que a presença de um xamã produz um tipo de realidade no tabuleiro que é mais próxima desse mundo. Porque nesse mundo nós não temos visões rígidas, nós mudamos também. Então, por exemplo, se a gente imaginar que o jogo espelha a realidade, aquilo não é totalmente verdadeiro, porque é um jogo no qual cada peça é muito fixa nas suas possibilidades. Mas a realidade não é essa. A realidade é que… A gente poderia até criar fases no jogo de xadrez. Tem uma fase em que são bispos. Aí a pessoa melhora aquele jogo, pode ter a fase do xamã 1, que tem algumas habilidades. Aí se pessoa avança naquilo ela desenvolve um xamã 2, que tem outras habilidades. Então isso é interessante. Por quê? Por que a realidade é assim. Esse é o mundo. Os papéis são plásticos, ninguém é “um peão”. A pessoa exerce uma função durante um tempo, né, e ali ela tem as aptidões. E mesmo como um peão ela vai desenvolvendo aptidões com o tempo.

Então isso é arte também, né? Então aquele mundo é um mundo totalmente simbólico, mas ele coemerge com o nosso imaginário. Então se agora a gente tem um imaginário de coemergência, de que as coisas mudam, e que elas não são fixas, etc., a gente pode criar um jogo que espelhe esse imaginário. Então quando a gente olha o jogo de xadrez naquele tempo, a gente pode imaginar que as pessoas tinham uma visão piramidal, todos eles fixados em papéis fixos, mas essa não é a realidade.

Marcus: Seria possível, digamos, alguém que tenha uma experiência de estar em crise agora – sei lá, foi demitido – teria como a gente…

Alisson: Terminou um namoro, hipoteticamente… (risos)

Marcus: Alguém que não consegue parar de comer rosquinha no meio dos retiros…

Lama: Ops, isso já é uma coisa pessoal aí, eu tô sentindo… (risos)

Marcus: Teria como a gente gerar um exemplo pessoal, para as pessoas verem como o reconhecimento dessa liberdade pode ser usado no dia-a-dia delas?

Lama: Eu acho que o melhor é olhar as experiências do passado. É mais fácil. Porque com as experiências do futuro a pessoa sempre pode dizer, “olha, isso é uma teoria, eu não consigo”. Mas quando a pessoa olha pro passado, a pessoa vê que ela já passou por muitas coisas bem difíceis e tá viva, ela tá ali, e ela parou de chorar, a crise passou. E a gente pode perguntar, “a crise passou porque a situação mudou?” Não, a situação é a mesma, mas a crise passou. Então passou por quê? Ela passou porque, a gente mudando os referenciais internos, as crises passam. E a gente pode incluir nisso morte de filhos, que é entre as coisas piores que podem acontecer. A pessoa passou por isso. Então aquilo foi horrível, é horrível mesmo. A pessoa pensa, “eu nunca mais vou me recuperar disso, não tem como me recuperar.” Mas a pessoa se recupera.

Guilherme: E aí, quanto ao nosso papel. O senhor tem algumas falas sobre a necessidade de sermos amigos verdadeiros pras outras pessoas. A gente até entende isso quando falamos, “ah, nossos melhores amigos”. Mas aí quando a gente tá em conexão com as pessoas, a nossa forma de estar no mundo e ver sofrimento e ver essas crises, ao senhor coloca essa ideia de que deveríamos ser esse amigo verdadeiro. E aí, como que, então, poderíamos imaginar que poderia ser a nossa ação na conexão com as pessoas, para além do que a gente entende como a proximidade usual, família, melhores amigos. Como a gente poderia se colocar?

Lama: Eu acredito que a chave para isso é as cinco sabedorias. Se a gente não quiser uma coisa tão complicada a gente pode começar pelo menos com metabavana. Porque só um verdadeiro amigo é que vai dizer, “que você seja feliz, que você encontre as causas da felicidade, que supere o sofrimento e as causas do sofrimento”, entendendo isso assim, desse modo, né? Porque os amigos mais ou menos, eles buscam o que a pessoa acha que é a solução, eles procuram dar força pra direção equivocada, muitas vezes, que o outro tá seguindo. Como se eu aumento a força dele e ele resolve aquilo. Mas eu aumento a força dele e ele vai parar num outro universo também que pode ser bem problemático, né?

Às vezes a transmigração parece o melhor, né?Agora, se a gente disser muitas vezes, contemplar muitas vezes, “que ele seja feliz, supere o sofrimento, encontre as causas da felicidade e supere as causas do sofrimento”, se a gente disser muitas vezes isso, aí a gente vai saber olhar de uma forma mais profunda a situação do outro e vai, de algum modo, ajudá-lo.

Mas se a gente quiser ajudá-lo, a gente pode usar as Quatro formas de ação. A gente não se perturba pela situação do outro. Então vamos supor que vocês têm um filho em situação asmática, ele tá “ahhhh” (imitando dificuldade de respirar), não consegue nem chorar, tamanha a angústia dele, mas ele tá trancado e não consegue nem chorar. É melhor vocês se acalmarem. Melhor se acalmar. Se vocês ficarem ansiosos, aí pronto, não tem solução. Aí se você disser pro outro, “agora você respire devagar, não respire rápido, respire devagar, devagar, incha bem o pulmão, agora esvazia bem o pulmão, devagar”, isso é ação pacificadora, reduz a angústia do outro. Aí de repente ele vê que tá passando o ar, “ahhh, ahhh”, aquilo é suficiente pro outro se manter vivo. Aí vem a ação incrementadora. Nós vamos olhar o que mais a gente pode fazer: a gente melhora o ar da sala, a gente vai produzir alguma coisa, algum remédio que dilate a glote, que faça ele superar aquilo, a gente vai chamar um médico urgente que venha à pessoa ou por telefone ele diga o que fazer, pra que a gente possa superar aquela crise, que é uma crise eventualmente alérgica que a pessoa ficou afetada por alguma coisa. Então isso é a ação incrementadora. Aí tem a ação irada. Depois que aquilo de algum jeito passou, aí a gente ajuda a pensar como fazer, alterar a alimentação, alterar procedimentos, alterar coisas, que podem trazer algum nível de desconforto pro outro, mas aquilo precisa ser olhado. Eventualmente, em casos de saúde, a pessoa precisa de algo muito grave. Eu já vi, por exemplo, em caso de bloqueio de glote, a pessoa usar caneta Bic, furar aqui com uma caneta Bic, aí depois tu tira a tinta e bota só a caneta Bic, que ela tem… [imita os sons de sopro], aí tu usa aquele furo para acessar a traquéia, aí tu fura nesse lugar, aqui, que não vai causar problema com as cordas vocais, e salva a pessoa. Mas ninguém leva uma caneta Bic aqui assim muito faceiro, não é uma coisa naturalmente feliz, né?

Alisson: Inclusive, é melhor não fazer isso em casa também. (risos)

Lama: Então vocês não precisam testar isso, por favor, né? Se vocês forem testar, vocês peguem um facão e espetem o outro no pescoço… Essa parte corta depois. (Risos) Mas esse é o ponto. Por exemplo, vocês vão ver, todo cirurgião exerce ação irada. Tanto que tem que anestesiar a pessoa, de modo geral, para fazer aquilo. Porque a pessoa não resiste à ação compassiva que o outro vai fazer, a pessoa não resiste, porque ela tem um obstáculo naquilo. Então essas quatro formas de ação são super úteis.

Agora, se a pessoa tiver a possibilidade de usar as cinco sabedorias, então, entender o outro no mundo dele; se alegrar em trazer benefícios pro outro; entender que, enfim, não tem solução, aquilo que pertence ao samsara surge e cessa; aí usar as quatro formas de ação, como eu expliquei; e entender de fato que o benefício que a gente pode oferecer pro outro é ajudá-lo de algum modo a reconhecer aquilo que não é construído, a natureza livre da mente que tá presente na própria pessoa. E nesse nível a gente também pode ajudar, “olha, mesmo que tu não consiga ver coisa alguma, esteja no meio da confusão, a natureza livre da mente segue contigo, tu não tem como perdê-la.” Então o samsara não tem o poder de derrubar a natureza livre, o samsara é uma expressão dessa natureza livre, ele não consegue derrubar. Então o aspecto final da realização, daquilo que nós somos, não é derrubável pelo samsara.

Daniel: Lama, também ligado a esse tema que o Ghee levantou sobre sermos amigos verdadeiros pros outros, a gente pode pensar: muitas vezes a gente se vê em situações querendo ajudar as outras pessoas, mas sem os meios hábeis pra isso, sem capacidade pra isso. Mas eu também já ouvi o senhor falando da gente ter uma responsabilidade nesse sentido. Uma boa maneira de ensinar seria pelas costas, com a nossa ação. E outro ponto que eu ouvi o senhor falar que eu achei muito legal, e que seria legal falar de novo, é que tem algumas regiões em que só a gente vai conseguir chegar, alguns lugares em que só a gente consegue ajudar.

Lama: É verdade. Isso é quando eu quero aumentar a responsabilidade de cada um (risos), pôr um peso na consciência. Porque é de fato assim, né? Por exemplo, vocês olhem, o Buda deu ensinamento naquele tempo, ele não chegou em todo mundo, né? Então é super importante entender que a conexão das pessoas, por vezes ela vem mais facilmente com pessoas que habitam uma região cármica parecida. Então as regiões onde nós habitamos têm conexões conosco, aquelas pessoas não é por acaso, aquelas pessoas têm uma conexão cármica, senão a gente não tava ali. Então é super importante que a gente entenda isso, e avance no nosso caminho, e a gente se liberte e que o nosso exemplo ajude as pessoas que estão ao redor. Porque o que nós fazemos é visto por todos. Então esse nosso procedimento, o quê que a gente faz, termina sinalizando o caminho, a rota de saída. Então é importante que a gente entenda no lugar onde nós estamos a gente consegue beneficiar os outros simplesmente pela prática que a gente faz enquanto está ali.

Guilherme: Um outro ponto, conectando, lama, a gente está aqui, todo mundo, reunidos num retiro que o senhor está dando sobre as Quatro Nobres Verdades. E muito do que a gente vê no cotidiano hoje em dia, com o cenário em que a gente tá, de  diferentes crises, a gente acaba encontrando muito rapidamente em muitas conversas muita apatia, muito niilismo mesmo, de muita gente que realmente não está vendo muita saída. E trazendo um pouco essa visão também que o Dani iniciou sobre como coemergência, não necessariamente conectada ao budismo, ao aspecto religioso, pode ajudar, como o senhor vê que as Quatro Nobres verdades poderiam ajudar esse ponto da apatia e do niilismo em relação a como ajudar e o que fazer, num contexto de crise como o que as pessoas estão experienciando?

Lama: Essa é uma boa pergunta, né. Mas eu tenho a impressão que a apatia e o niilismo, eles são como que uma perturbação adicional do samsara, elas também são como perturbações passageiras. Porque a pessoa pode estar com uma apatia, mas se o calor chega muito perto dela, ela abandona a apatia e sente que vai ter que se movimentar. Então a apatia me parece que é uma circunstância de uma condição ainda favorável. Então o próprio andar do samsara vai tirar a pessoa da posição de apatia, porque, de repente, ela é atropelada pelas coisas. Eu acho, assim.

Agora, o niilismo eu acho mais complicado, um pouco. Então nesse momento eu tenho a aspiração de que a gente consiga se movimentar quebrando essa visão do niilismo. E quando a gente trabalha as Quatro Nobres Verdades, a gente pode focar o niilismo no sentido que o niilismo vem como uma reificação, ou seja, uma consolidação do sofrimento. A gente dá um sentido muito sólido ao sofrimento, então a gente vai desenvolver o niilismo. A gente precisaria entender, ganhar um pouco de liberdade nisso, né? Então eu acredito que a coemergência pode nos ajudar a ver o niilismo surgindo coemergente com certas visões. Mas outras pessoas, olhando pra aquilo mesmo, elas não teriam uma visão niilista, elas não teriam uma visão pessimista, elas poderiam ter outras pessoas. Então quando a gente começa a estabelecer uma conexão do mundo interno com as aparências, eu acho que isso pode nos ajudar a sacudir o niilismo.

No que diz respeito à crise que nós estamos vivendo, por exemplo, a crise ambiental, a crise civilizatória que a gente está vivendo, eu acredito que a gente precisaria trazer essa visão de que o mundo é aquilo que a gente constrói. Então a gente constrói, de fato, com as nossas ações, uma série de coisas que parecem completamente sólidas e verdadeiras, mas elas brotam de uma visão interna, então se a gente muda essa visão interna a gente vai produzir outras realidades e outras coisas sólidas. Aquilo não é um mundo que seja opressivo de fora pra dentro, ele é opressivo de modo coemergente. Então através do princípio da coemergência nós conseguimos também criar outros mundos.

Aí a questão ambiental, a questão civilizatória, ela não é uma questão desse tempo agora, ela é uma questão sempre presente, porque a gente sempre teve uma civilização que é uma civilização do samsara, com muitas disparidades, com muitos sofrimentos, sempre foi assim, né? E agora nós estamos num extremo, mas não alterou a qualidade daquilo, alterou a dimensão. Então hoje a gente tem o poder de destruir tudo. Mas hoje também está mais claro que nós temos o poder de construir mundos. Então nós podemos construir, pelo próprio exercício lúdico da construção de mundos, nós podemos construir mundos melhores. Esses mundos melhores se tornam o ornamento da nossa compreensão de como as coisas efetivamente são.

Então eu acredito que isso pode produzir uma alteração importante. Então eu pessoalmente, nesse momento, estou desenvolvendo essa aspiração de nós contemplarmos os vários núcleos onde pessoas se agrupam segundo lucidez, e começam a construir realidades locais, e a gente começa a construir um tecido social, estabelecendo conexão entre essas realidades locais que brotam pela compreensão de uma liberdade de, enfim, construir as coisas de um outro jeito, né. Eu acho que nós estamos construindo um outro tecido social, um outro tecido econômico, e isso é um ornamento natural da liberdade da mente, da luminosidade, da vacuidade, da coemergência.

Marcus: Lama, você poderia falar um pouco sobre como você vê esses experimentos, por exemplo, nas aldeias do CEBB, o impacto que tem sobre a vida das pessoas o fato delas estarem mais próximas, delas estarem fazendo coisas que fazem sentido, e o quão diferente isso é do nosso modo de vida usual?

Lama: Como eu tô imerso nisso, muitas vezes eu tenho um pouco de dificuldade, né? Porque a gente quando fala, a gente tem que falar por diferenciação. Então eu olho e não acho uma graaande coisa. (Risos) Mas quando eu olho a partir do samsara, eu acho aquilo muito incompreensível.

Eu observo assim, por exemplo, tem pessoas que estão próximas, que são amigos, aí eles vêem e eles querem entender, ou eles querem fazer também igual. Aí eu acho quase impossível para eles fazer aquilo. Eu tava explicando agora… o Ponlop Rinpoche esteve lá no Sul e ele também perguntou sobre isso, o Acharya também perguntou, o Carlos, né, eles perguntaram sobre isso. Eu acho difícil explicar. Porque a forma… essa gestão por mandalas é um pouco estranha. Nesse tempo nós estamos, por exemplo, obrigados a explicar a gestão por mandalas, a explicar esse processo todo para a prefeitura lá em Viamão. A gente é obrigado a explicar para eles. Não é uma coisa muito fácil. Nós estamos fazendo isso, eu acho que nós vamos ter sucesso, vai dar certo, acho que vai funcionar. Mas eu não sei se eles vão entender bem, eles vão respeitar o nosso jeito como um jeito especial de fazer as coisas andarem, mas eles não vão entender.

Agora, eu acho que eu não saberia viver de um outro modo, nesse momento. Se eu tivesse que viver dentro do samsara, num sentido convencional, eu teria muita dificuldade. Ou seja, trabalhar, voltar para a universidade, agora eu vou dar aulas, vou fazer tudo andar e vou receber aquele salário, aí eu pego as minhas coisas, aí eu sigo dentro do meu apartamento vivendo assim, aí eu penso, “bom, daqui a cinco anos eu troco o carro. Não sei como eu vou pagar o curso de inglês das crianças. Mas vamo andando assim. Bah, esse alimento é tudo meio envenenado, eu não sei nem que conteúdo tem isso, mas enfim, o que eu vou fazer? Eu vou comer isso, que é o que tem aí. Né, aqui tá uma poluição, essa água eu não sei como é que ela tá. Mas aí vou vivendo, enfim, que outra vida tem? O mundo é assim, então eu vou viver assim.”

Então é meio estranho. Aí nós, lá, a gente tem a sensação que a gente vai consertar a galáxia, arrumar o mundo interno. Então a gente tá assim, cabelos ao vento, né?

A gente não vê dificuldades econômicas, por exemplo, porque a gente opera por méritos, e os méritos, eles resolvem tudo. Então agora, por exemplo, nós estamos organizando o fórum Tupambaé, nós estamos conversando, convidando muitos diferentes atores sociais que estão desenvolvendo experiências, que estão produzindo orgânicos, estão produzindo de um outro jeito. A gente quer juntar eles pra criar esse tecido econômico e ajudá-los a dar certo. Quando a gente começou a pensar no fórum, aí veio pessoas sérias e disseram, “mas como é que a vamos pagar isso, como é que nós vamos fazer?” Essa é a última pergunta que a gente faz, a última pergunta. Por quê? Porque tendo méritos, aquilo sendo bom, sempre vai ter muitas pessoas que vão apoiar aquilo e aquilo vai funcionar. É o que tá acontecendo. Nós vamos gerar uma coisa grande.

Por exemplo, uma estranheza também. Como que o CEBB agora tá com nove áreas rurais? Ele tem centenas de hectares dentro do Brasil, mais de 500 hectares, com certeza. A gente que a gente tá por 600 hectares, ou mais, não sei. Isso… é muito caro! Como é que a gente administra isso? Aí vêm e perguntam, mas como é que o lama, aqui, como uma cara mais ou menos, assim, tranquila, como é que administra isso tudo, e gente pra todo lado? Eu não administro! (Risos) Mas aí se eu digo, “eu não administro”, eles “ahhh!”, como isso? Então a mandala, tem um tipo de inteligência que administra isso. É assim. Aí eu digo, todos os vários CEBBs, nós temos vários CEBBs com CNPJ, com direções, não têm nenhum vínculo formal, eles vão fazer o que quiserem. Então como manter a unidade? Aí tu não consegue explicar como é que a unidade é mantida. Aí tu pensa, “não, é por excomunhão, por excomungar, quem saiu da linha, pah, excomunguei.” Não é assim. Aí nós estamos acolhendo todo mundo, as pessoas podem fazer coisa errada, nós estamos lá arrumando, equilibrando, com não-julgamento, desenvolvendo vínculo e avançando. Aí nós vamos andando.

Agora, isso não é uma explicação, essa explicação não serve. Porque tem uma magia ali dentro que tu não consegue explicar como é que aquilo se dá. Mas eu vejo isso como uma coisa completamente real. Eu me movo dentro disso, assim, calmo. O que eu quero pros meus filhos é isso, o que eu quero com a sanga inteira é isso, que eles andem calmos dentro disso, porque eles estão protegidos. Isso é terra pura, mesmo. Ou seja, num nível sutil tem um ambiente, esse ambiente faz isso tudo andar. Agora, por exemplo, se as pessoas olharem… Elas compraram isso… Hoje eu estou mandando um estatuto pra uma pessoa que quer fazer alguma coisa parecida. Eu fico super feliz quando as pessoas querem fazer. Mas elas podem pensar que aquilo começa no estatuto, não começa no estatuto. Ela começa no espaço sutil. Se a gente pensar que a gente vai pegar o estatuto, pegar dinheiro, e montar uma estrutura, não vai funcionar. Eu lastimo, eu gostaria muito que funcionasse. Agora, por que não vai funcionar? Porque não é uma estrutura piramidal, se não tiver aquilo ancorado no espaço sutil, onde todos convergem entre si pelo espaço sutil, no espaço grosseiro eu não consigo fazer as pessoas convergirem. Não consigo, não tem jeito. Então eu podia pensar, “bom, isso que tá sendo feito já podia ter sido feito há muito tempo, é só copiar.” Não, tem uma construção no nível sutil. O conjunto dos ensinamentos vai transformando a mente das pessoas, as pessoas começam a operar, elas nem percebem que elas estão operando de um outro jeito. Esse outro jeito permite a pessoa ouvir o outro e aceitar aquilo, incorporar como riqueza, e avançar, convergir, sonhar, ir encontrando os meios. Isso pode parecer totalmente ineficiente, mas não é, é super eficiente. Mesmo que pareça lento, não é lento, é rápido. Mesmo que pareça lento. Porque aquilo que parece rápido não é rápido, porque vai e bate, não se mantém. Então a transformação cria as aldeias. As aldeias não são uma criação, elas vêm de uma aspiração genuína dos praticantes de fazer prática, de estar juntos, de fazer boas ações, aí eles se juntam e aquilo acontece. E as outras coisas vêm na decorrência, por exemplo, a escola vem porque estão ali as crianças, a gente também quer perpetuar aquilo. Se a gente vai fazer uma horta, claro, a gente não quer comer envenenado, entende? Aí tem os vizinhos. Os vizinhos vêm, interagem conosco, e a gente precisa de algum jeito ajudá-los. E assim vai, aí no fim se estabelece tudo, mas a motivação é a mesma.

Aí se estabelece. Mas não tem regra dentro disso. Se tiver regra, nós estamos fixados, nós temos sofrimento. Agora, se não tem regra, o que que nós somos? Aí vêm as pessoas de fora, “mas o que vocês são?” Aí a gente tem um pouco de dificuldade. Mas quando o banco pergunta, “o que vocês são?”, aí nós temos que mostrar uma cara. Aí nós temos que ter um estatuto, e esse estatuto tem que ser representado dentro da legislação, do que a legislação permite, então o nosso estatuto tem que estar arrumado segundo a legislação. Porque pra olhar para nós eles têm um modelo, então nós temos que criar o espelho que eles precisam. Então nós temos uma estrutura que agora tá muito mais sofisticada e virginiana, a gente poderia dizer. Nós estamos passando pelo desafio virginiano, ou seja, tudo totalmente arrumado. Se vem qualquer fiscal de qualquer lugar e pede os documentos, nós temos todos os documentos, tudo assinado, tudo comprovado, toda a parte financeira totalmente arrumada, tudo ajeitado. Por quê? Porque a gente acha que, enfim, a gente deve oferecer o melhor que os outros pedem. Então eles querem isso, a gente tem isso. Tudo arrumado, tudo direitinho assim.

Mas dessa estrutura pra dentro nós operamos pelas mandalas. As mandalas estão livres, as pessoas transitam por dentro daquilo, elas sonham e criam outros mundos, e aquilo tudo vai andando. Agora nós estamos construindo um templo maior que o templo do Caminho do Meio no Bacopari, só pra retiros. Porque o Caminho do Meio tá um pouco agitado, a área do Bacopari é uma área de mais silêncio.

Então a gente tá organizando, provavelmente em janeiro vai ter um retiro pra umas 150 pessoas, durante quinze dias, dois períodos de quinze dias, com instruções e tudo. Então a gente faz [estala o dedo], aquilo brota da areia, assim. Como? Arquiteto de Santa Catarina, engenheiro também de Santa Catarina, de diferentes cidades, eles estão projetando todos os detalhes. Aí os construtores, de lá. Aí tem uma rede de pessoas, todo mundo trabalhando. Por que essas pessoas estão trabalhando assim? Estão trabalhando pela alegria de fazer aquilo funcionar, pela pura alegria de ver isso andar. Aí tudo brota do chão. Impressionante. 

Marcus: Um pouco nessa linha do que o senhor ta dizendo, nos seus ensinamentos de hoje uma praticante relatou problemas na família, de relacionamentos e o senhor sugeriu resolver internamente primeiro. Seria mais ou menos esse mesmo princípio?

Lama: É um pouco isso, mas esse internamente não deveria ser isolado. Eu acho que nós estamos num tempo interessante, ta certo que sempre existiu a sanga, agora a sanga no tempo do Buda, era a sanga ordenada, era  um grupo de pessoas, era um grupo monástico. Posteriormente a época do Buda, surgem os mosteiros formais. Então tem os monges e isso se funde com uma forma de vida. Então o mosteiro é como se fosse uma aldeia. Mas em princípio, essa aldeia não é totalmente sustentável. Ela depende de uma interação com uma comunidade ao redor que não são de praticantes propriamente mas são de pessoas das próprias famílias dos monges. Mas as aldeias onde as pessoas estão vivendo, elas não são regidas propriamente, eles não estão fazendo prática, não estão estudando, não estão com uma visão de mandala. Eles estão com uma visão comum de mundo. Ta certo que eles têm visões espirituais, então eles têm níveis de compaixão. Eles se movem, mas eles não se colocam como aqueles que vão atingir a liberação. Eles deixam isso pros monges. 

Eu acho que isso é uma estrutura que nós estamos superando, nós estamos criando um outro tipo de estrutura onde todo mundo trabalha um pouco, todo mundo faz um pouco, todo mundo segue o caminho em direção a liberação à partir de instruções pontuais. 

Por exemplo, na época os mosteiros têm por meta principal manter vivo o que buda falou, o que os grandes mestres falaram naquele tempo, debater, tornar aquilo totalmente vivo e se manter. Então esse é um processo erudito. Ta certo que nem todos os monges fazem isso. Mas os monges que não fazem isso são apoiadores dos que fazem isso. Então surgem as universidades monásticas que são locais onde todo mundo estuda desse modo. 

Mas agora a estética ficou diferente, não é porque alguém quis fazer ela ficar diferente, mas porque enfim é possível a gente fazer prática em meio a vida, fazer prática séria, aprofundar. Nós, nesse tempo que é um tempo recente, onde surge Dudjom Rinpoche, Dilgo Khyentse Rinpoche, as traduções de Dudjom Lingpa aparecem, então nós temos instruções pontuais. Também os mestres Kagyu vêm trazendo instruções de prática direta de visão direta que derivam de Tilopa, Naropa. Então são instruções super preciosas de como a gente pode praticar em meio a vida. 

Vocês olhem que Tilopa tava em meio a vida, ele não tava num mosteiro. Naropa saiu do mosteiro pra receber os ensinamentos de Tilopa. Naropa foi um mestre de Marpa. Marpa também, ele era um fazendeiro, ele produzia, ele tinha um aldeia. Eles viviam numa aldeia, ali vai aparecer o Milarepa. Então por volta da aldeia todo mundo pratica um pouco e volta pra aldeia e vai andando. Então esse mundo é um mundo onde todos são praticantes. Então essa estética é interessante. Ai surge Gampopa também, Gampopa vem de uma formação monástica. Ele recebeu os ensinamentos da linhagem de Atisha, então isso vai terminar gerando os ensinamentos de Gampopa que a gente estudou aqui. Aquilo é uma fusão dos ensinamentos de Atisha com a visão de Milarepa, de Marpa.

Então eles começam com a mente iluminada, é diferente por exemplo dos ensinamentos de Lamrim, que começam com as dores do samsara. Então eles começam com o potencial da iluminação que todos temos. Isso é a dimensão imediata do ensinamento de Tilopa que é a mente iluminada em meio a circunstâncias, então ele não começa com a desgraça, ele começa com a iluminação. Então esse é um ponto interessante. 

Então essa estética já surgiu em diferentes momentos mas é a estética desse tempo agora também. A estética monástica tem muita dificuldade nesse tempo. Tem que perguntar pro Alan Wallace porquê ele deixou de ser monge. Ele vai explicar que não é fácil ser monge em meio ao mundo como ele ta localizado, ele como monge chega no mundo e as pessoas vão dizer: olha você não está entendendo certas coisas. Você não entende bem o funcionamento do mundo, você não tem como falar muito sobre isso. E a pessoa se vê um pouco despreparada realmente pra falar sobre as circunstâncias que estão todos vivendos. Então é como se fosse uma falta de compaixão o bodhisattva não afundar junto com todo mundo no lugar onde os seres estão. Ele vai experimentar aquilo do jeito que tiver que experimentar. E ele vai andando. Então nós estamos nessa estética agora. Então eu acho maravilhoso que tenha essa compaixão, que tenham os termas, os ensinamentos curtos, diretos, transmissão piedosa que é um tipo de transmissão. Não é a transmissão pelos textos. 

Mas eu vejo, especialmente assim no CEBB, a minha visão é que a gente avança nessa transmissão, melhora e aí quando nós vamos ler os textos, eles estão translúcidos pra nós, eles estão nítidos.Tu lê rapidamente aquilo. Por que? Porque a pessoa praticou, ela olhou, ela olhou de forma muito ampla tudo. Aí quando ela vai olhar os textos ela também vê aquilo de forma mais rápida.

A gente tá nesse ponto. Aí eu acho maravilhoso que as aldeias elas vão andando nesse ambiente. Eu tento ampliar o núcleo do ensinamento, produzindo melhores locais de retiro e tentando que os ensinamentos que conduzem aos retiros, as explicações fiquem mais e mais claras. Mas por outro lado eu tento ampliar a base de acolhimento, ampliar assim de tal maneira que qualquer pessoa que passe por ali ou entrou ali pra entregar alguma encomenda, a pessoa em qualquer circunstância. 

Eu acho que por exemplo a coemergência, o grupo coemergência, o projeto coemergência é algo nesse sentido, vocês conseguem em chegar em muitos diferentes lugares. Eu, nesse momento, eu tô me estruturando, eu desenvolvo essa noção de temas de contato. Por exemplo depressão, suicídio, alcoolismo, drogadição, que são pontos de contato que vem por sofrimento. Aí tem outros pontos de contato que vem por conexões positivas, a pessoa quer um sentido na vida, quer construir realidades, quer construir coisas, quer dar certo. Então tudo isso são pontos de contato. 

Ai tu oferece esses pontos de contato, a pessoa tem contato. Dali, tu aprofunda a visão do mundo interno e da coemergência do mundo externo e aí tu vai falar sobre as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos. Aí surge uma estrutura e a pessoa diz: Sim! Eu quero entender melhor isso, eu quero melhorar! 

Então esses pontos de contato conectam com as linhas temáticas. as linhas temáticas vão conduzindo as Quatro Nobres Verdades, elas estão inspiradas nas Quatro Nobres Verdades. Aí nós vamos indo. 

Eu acho que hoje tem uma rede grande no Brasil dos tutores, facilitadores, vocês são facilitadores diretos, que estão efetivamente ajudando as pessoas a andar melhor. Refletir sobre as vidas deles. Eu acho, né? 

Murillo: A gente tá hoje numa cultura muito teórica. As pessoas podem estar ouvindo esse podcast e entender muita coisa, aquilo fazer muito sentido na vida delas e na semana seguinte eu vou continuar olhando meu whatsapp, facebook, twitter, entrando nas redes, ficando meio amortecido. Ai eventualmente esqueço, mesmo achando isso importante. Então, que conselho você daria pra gente ter mais continuidade, penetrar essa sabedoria na nossa vida cotidiana.

Lama: Essa é uma boa pergunta. Eu acho que a pessoa deveria ficar calma, não pensar em tomar grandes decisões, por outro lado esse conselho de modo geral não funciona muito bem. Ninguém quer ficar calmo, as pessoas querem fazer alguma coisa que produza um significado. Mas se a pessoa tentar fazer coisas que vão produzir significado ou não quiser fazer coisas que produzem significado, uma vez que ela ouviu isso, aquilo segue operando num nível sutil, e vai transformando esse nível sutil, mesmo que a pessoa não esteja focando de novo e de novo naquilo. Vai operando.  

A pessoa vai encontrando uma realidade aqui e outra e começa a dar uma solidez, então esse processo de amadurecimento não tem muito como acelerar muito, se a pessoa puder de vez em quando relembrar isso é uma boa coisa, mas se a pessoa quiser acelerar ela toma isso e começa a olhar a sua vida, e começa a olhar a vida dos seres ao redor, a pessoa pode sentar na natureza, que eu acho também super importante, e ficar calmo. Ela vai ver seres passando. Seres concertos. Não é nada assim muito abstrato. Ela vai ver borboletas, vai ver pássaros, vai ver roedores, vai ver formigas, vários seres, pessoas também. 

E ai ela vai olhando as Quatro Nobres Verdades e vai reconhecendo aqueles seres operando dentro de mundos específicos, eles desenvolveram corpos específicos para operar naqueles mundos. Aquilo levou tempo até eles especializarem aqueles corpos para aqueles mundo sutis onde eles estão operando. E eles têm habilidades que nós não temos. Eles desenvolveram vários métodos muito interessante, mas eles estão fixados em avidya e o corpo deles manifesta aquele tipo de avidya e aí na medida que a gente entende eles a gente entende que também que a gente manifestou vários tipos de avidya que terminaram surgindo na forma do corpo, do nosso corpo como ele se apresenta. Aí nós vamos vendo isso, vamos olhando.

Isso nos produz uma visão que depois se torna praticamente impossível a gente ficar preso, fidelizado a estruturas limitadas do samsara. Porque abre um olho que aí a gente olha de um jeito e a gente se torna não confiável ao samsara. Ninguém vai nos contratar. Vão fazer um teste, a gente não passa no teste psicológico.

Marcus: Então é essa a explicação? É isso que ta acontecendo?

Lama: É isso, eles aprendem a nos localizar, nós não conseguimos fazer boas tarefas repetitivas. Eles vão ver direitinho – esse não é confiável. Ele tem uma criatividade que pode brotar a qualquer momento, ele não tem uma fidelidade em relação a uma linha que precisa ser feita. ele não vai suportar aquilo sob condições estresse, ele vai tentar outras saídas.

Então, a gente se torna não confiável, a gente não vai desenvolver uma fidelidade a aspectos comuns do samsara. A gente não vai desenvolver isso, porque nós estamos treinando o contrário. Eu nunca contrataria vocês (risos).

Daniel: É um elogio. Fiquei feliz (risos).

Lama: Essa é minha sugestão, que ninguém contrate vocês. Bom, aí foi demais! Não, se vocês quiserem pessoas criativas que são capazes de chegar nos lugares e ver outras soluções, aí contratem eles. Eles são capazes de ver coisas muito amplas, são capazes de se alegrar, são capazes de não ficar obedecendo os dias da semana, nem os horários, são capazes de operar de uma forma ampla. É esse, o pessoal do coemergência.

Era isso que vocês pediram pra eu dizer? (risos)

Daniel: Lama leu o roteiro direitinho…. (risos)

Lama, a gente tá chegando no final, sempre no final das nossas gravações a gente entra numa sessão que chama pergunta maluca. Mas ela não é tão maluca assim. A gente sempre pergunta pra quem tá com a gente assim, dentro do que o senhor tem contemplado, na sua experiência em primeira pessoa por todos esses anos, qual que o senhor sente que é a mensagem mais urgente a ser passada pras pessoas. Quando o senhor tem a chance de falar algo, o que o senhor sente que é o mais potente, por onde o senhor iria.

Lama: Eu diria que o mundo não é um estrutura externa que se revela opressiva sobre nós. O mundo que a gente olha como externo é inseparável, é coemergente com a nossa mente. Então na medida em que a gente ganha o espaço interno, surge o espaço externo também e nós podemos construir mundos muito melhores pros seres. 

Mas esses mundos não deveriam ser construídos por líderes, eles deveriam ser construídos pelas mandalas, ou seja, as pessoas sonhando seus mundos e avançando nessa direção. A gente não precisa de um salvador, a gente precisa ajudar a cumprir nosso papel de sonhar melhores circunstâncias pra todos, que incluem as montanhas, as florestas, os rios, os mares, os seres todos, nos vários níveis. 

Nós como praticantes budistas, a gente pode ser convidado a contemplar a natureza de Buda de todos os seres, de todas as inteligências, não apenas as inteligências grosseiras, mas também no nível sutil, as inteligências que são coletivas, elas também representam a natureza de Buda. 

Daniel: Tem só mais uma. O que a gente deveria ter te perguntado que a gente não perguntou, Lama?

Lama: Bah! Essa é uma boa pergunta! Eu acho que uma boa pergunta é se tudo isso é possível praticar ou não. Se isso não é uma boa teoria. 

Daniel: Alguém quer fazer essa pergunta? (risos) 

É possível?

Lama: Eu acho que é possível. Acho que é possível. Eu acho que a gente não deveria, por exemplo, retornar ao ambiente das identidades e nos julgar dentro disso, e nos condenar porque a gente consegue ou não consegue. A gente não deveria fazer isso, mas a gente deveria voltar e reconhecer esse aspecto livre da nossa mente. 

O aspecto de coemergência e pensar junto com os outros, ou seja, sonhar, sentar em roda porque em roda cada um tem a natureza de Buda ele é capaz de ver. Então é muito mais poderoso do que alguém que tenha uma visão e tente arrastar os outros. Eu acho que é muito interessante porque a gente quando tá em grupo e pensa junto e sonha junto a gente não sabe o que vai dar aquilo mas quando a gente pensa o que é que tá indo bem, como fazer melhor, aí brotam imagens e essas imagens elas estão empoderadas pela nossa própria energia, pela aspiração que a gente tem de fazer coisas melhores. 

A natureza de Buda está nos trazendo essa energia e nos colocando e a gente sente que isso é viver, que isso é  alguma coisa muito satisfatória. Eu vejo por exemplo que aqui eu poderia ta aposentado, alias, eu tô aposentado (risos), mas pra mim não faz nenhum sentido aposentadoria. Eu acho que a energia que me move é a mesma energia que me moveu em qualquer tempo. Eu acho que isso é melhor pra cada um, sabe? A gente viver assim. É muito melhor. 

E eu também não tô pensando, por exemplo, quando eu to pensando dentro da mandala, eu não fico pensando o que é que vou fazer pra colher em algum lugar. Eu fico pensando o que é que é bonito que aconteça, pro conjunto dos seres. Isso é muito melhor, muito melhor. 

Então, a gente não tem, por exemplo, a limitação de bom, eu não vou fazer isso porque nossa vida, enfim, eu já to morrendo. Não tem isso, porque a vida continua, a inteligência continua, tudo continua. Então é maravilhoso, a gente não necessita conter a nossa ação ao período da nossa vida. É um negócio super bom. A gente descobre que tem essa natureza que ela não envelhece no sentido sutil, porque ela olha num tempo que não é um tempo, propriamente. Então é super bom.

Bom, agora a última (risos)

Daniel: Agora a introdução da última. Não, Lama, agora a gente só quer agradecer mesmo. Esse projeto do podcast ele surge, vários de nós aqui nos reunimos pra morar juntos e o nosso ponto de conexão foi o CEBB e pela prática e pelas visões do que nos foram apresentadas que a gente começou a praticar. a gente queria demonstrar a nossa gratidão por essa conexão ter surgido e é muita honra mesmo.

Lama: Todos vocês moram juntos?

Daniel: Às vezes sim, às vezes não 

Lama: Isso é melhor ainda. Porque não é fixo, né? 

Daniel: Agora a gente só quer agradecer mesmo, porque são essas mensagens que tocaram tanto em nós ao ponto da gente se conectar e ir morar junto e começar um projeto e transformaram nossas vidas

Lama: E como é que é morar junto?

Daniel: É muito difícil (risos)

Lama: Ainda mais com essas pessoas aqui (risos)

Daniel: É isso Lama, agradecer sua generosidade, muito obrigado por estar com a gente.

Lama: Agora eu já sei onde eu vou parar quando eu vier a são paulo. Ponho dois ganchos la, uma rede e pronto.

Daniel: Com certeza! Por favor. Então é isso gente, muito, muito obrigado Lama, obrigado todo mundo e nos vemos em quinze dias se a impermanência permitir.

 

 

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